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Revendo álbuns de histórias

Falar de fotografia é divagar pela história de quem a vive ou que dela vive. A realidade desta arte não existe, no seu sentido puritano. Afinal, cada um comporta a sua história e é nela que constrói o significado de fotografia. Para uns, uma obsessão. Para outros, uma profissão. Para tantos, uma banalização.

 

Luís Vintém recorda os tempos de criança… “existiam os fotógrafos e depois havia alguém numa família que tinha uma câmara fotográfica”. A escassez revela-se abundância quando conta que “sou obcecado por fotografias desde que era pequenino, porque o meu pai era a tal pessoa da família que tinha a câmara”. São álbuns cheios de história, revividos em tardes de sofá, onde cada página é um pedaço precioso de memória, “uma narrativa da minha família ilustrada por essas imagens, que foi muito importante para mim”.

 

O seu contacto precoce com a fotografia transporta-nos, a passo ligeiro, pela sua vida fora, entre vaivéns descompassados, num trava-acelera inconstante, pela incerteza do início da sua paixão. Uma bonita incerteza, que revela a genuinidade e pureza de um amante de fotografia – “acho que sempre tirei fotografias, mas provavelmente comecei a olhar para a fotografia de outra maneira na faculdade, talvez”. A licenciatura em Comunicação Social, com especialização na vertente de audiovisual, ofereceu-lhe as “ferramentas para trabalhar com as máquinas”. A partir de então, tentar-errar-corrigir é o ciclo que alimenta e faz desabrochar o trabalho, cada vez mais radiante, de Luís. Tentar, no fundo, imitar “os grandes fotógrafos, ou os fotógrafos que fazem coisas que nós sabemos que são bonitas e que há ali uma magia qualquer que não está nas fotografias comuns”. Um ciclo que, nos dias de hoje, se transforma também numa herança – “eu acho que é assim. Pelo menos é o que digo aos meus alunos: olhar-copiar. Acho que é um excelente exercício, porque a pessoa percebe o mecanismo, entende a linguagem”, já que o Luís é professor de Fotografia e Vídeo na ESTG de Portalegre.

 

Depois de envolver repetidamente os primeiros ingredientes, a receita continua. Captar momentos implica discernimento, portanto é preciso “ter umas certas balizas – fotografar sempre com a as mesmas proporções, não usar filtros muito excêntricos (como o instagram), tentar que as imagens sejam limpas, manter uma certa unidade. No fundo, para funcionar numa espécie de livro de estilo”. O estilo. O estilo que cada um cria, adapta e torna seu. Como uma casa. Que se constrói. Que se melhora. Que se decora. Que torna sua.

 

 

Navega-se num mar, encontra-se uma paixão

E para outra casa partimos. Lucas convida-nos a entrar na sua segunda casa, onde está “há mais de vinte anos”. Embutida numa fachada branca de portas rasteiras, a loja Foto Lucas recebe-nos sob uma enorme praça de calçada. Ao transpor as portas de vidro, o interior é um poço infindável de histórias, de pessoas sem nome e identificação sem rosto. Tudo começou há quase seis décadas. Foi nos anos 60 que, sob deambulações de mares estranhos, “quando fui para a Guerra do Ultramar, pela marinha”, que um colega lhe deu a conhecer um novo mundo. “Ele comprou umas máquinas, andava lá a tirar umas fotografias e depois fazia as fotografias no porão. Eu entusiasmei-me com aquilo e toca a fazer também. Ia para ao pé dele, aprender como era e como é que não era e fui fazendo”. Contava dezoito primaveras de curiosidade e descoberta quando navegou até ao continente africano e só perto das suas três décadas de existência regressou ao seu país natal.

 

Os anos não fizeram com que se esquecesse de como é pisar chão português, respirar uma espécie de liberdade. Os anos não fizeram com que se esquecesse de como é um disparo de uma máquina, gravar uma aparente eternidade.

 

Comprou uma câmara fotográfica quando chegou a Ansião, mas “não me entusiasmei muito, porque só havia pessoas a tirar fotografias para passes”. O corpo não se sustenta de ar e paixão. E na vez de o corpo desfalecer de fome e falta de abrigo, desfalece-se a alma, enquanto se trabalham vinte anos em construção de estradas. A persistência de Lucas levou-o a dar a voltar e, de máquina em punho, começou a fazer uns trabalhos em paralelo. “Foi em 83 ou 84 que fiz o primeiro casamento. Ia revelar a Tomar, à loja do senhor Pereira, que era ali onde está a rotunda grande, ao lado direito para baixo, a caminho do rio”. A caminho, a caminho do sonho, foi em 1990 que abriu as portas em pleno. “Saí do meu trabalho e abri a loja”. Até hoje. Todos os dias coloca a chave na fechadura da porta e luta para ter um negócio atualizado. Com dois filhos governados, vê-se sozinho e a fotografia é a sua companhia.

 

 

Um amor à primeira vista

A dez quilómetros de distância, um pouco mais a norte, no Avelar, cumprimenta-nos José Maria, com um delicado inclinar de cabeça, dali!, dali do fundo, da loja da esquina, que é forrada a vidros de cima a baixo. Aglomerada a outras que mais – as quais de tudo um pouco oferecem aos que por ali vão passando, entre dar um novo look ao cabelo, saciar o apetite com uma fruta fresca e suculenta, adoçar a boca com um bolo fofo e cremoso –, entramos num espaço de cor e boa disposição, ao som de um toque estridente que acusa a entrada de alguém naquele espaço. A recente redecoração é uma lufada de ar fresco. A exposição faz-se de sorrisos jovens e menos jovens, ora forçados, ora espontâneos.

 

E quando lhe perguntamos como tudo começou, é com um sorriso sufocado de espontaneidade que se vê José Maria voltar atrás no tempo, como uma cassete que rebobina vagarosamente…

Ufa! Chegámos. Aqui estamos, em África de novo. E vejam só!, o José é só Zézinho ainda, com os seus belos 18 anos. Movido pela tropa (tal como Lucas), José Maria “trabalhava numa loja que tinha muitas coisas: talho, mercearia, etc.. Entretanto, foi para lá um fotógrafo e foi a partir dessa altura que comecei a gostar da fotografia, que até aí não conhecia nada desta área”.

 

Apaixonado pelo ofício do recém-chegado, depois de trocas de palavras em noites de luar e cigarros partilhados, José decidiu comprar uma câmara fotográfica. “E cada vez comecei a gostar mais da fotografia. Quando comecei a ganhar algum dinheiro, mais ainda, claro. Tirava fotografias lá aos tropas e depois ia vendendo”. Saído da tropa, e a precisar de sobreviver – e como diz o ditado popular “não se faz pão sem se ter farinha” – foi trabalhar para um camião. Não chegou a dois anos para voltar para Portugal. “A partir daí, dediquei-me mesmo à fotografia”.

 

Foi com vinte e poucos anos que José tirou um curso para se especializar na área. “Naquela altura havia cursos por correspondência. Inscrevíamo-nos, eles iam-nos mandando os livros de fotografia, íamos estudando e depois enviávamos os testes para lá, até completar o curso. Durou talvez aí um ano, para conseguir os livros todos de fotografia”.

 

Com gosto e dedicação, foi assim que o jovem sonhador cria uma rede de lojas pela zona centro do país. “A primeira loja foi em Tomar, depois abri no Avelar e também nos Cabaços. Entretanto, abri em Figueiró e quando saí, deixei lá o meu sobrinho. Depois abri uma em Alvaiázere e deixei lá o meu outro sobrinho. Lá continuam os dois, agora. Também abri em Coimbra”. E entre negócios, negativos e rolos, conhecimentos travados, idas e voltas, anos vividos de máquina ao peito, a loja do Avelar manteve-se sempre e é a que perdura até aos nossos dias.

 

José Maria transmitiu o gosto pela arte de fotografar aos seus dois filhos. São eles que, atualmente, garantem continuidade da história já construída. “Um está em Lisboa, é freelancer. E outro está aqui, no Avelar. Eu estou para ajudar, no fundo, para colaborar com eles”. Lê-se no site da loja Foto Vitória que “a Foto Vitória reúne 41 anos de profissionalismo, rigor e muita dedicação”.

 

 

Lutas difíceis que sorriem no final

Herdar um sonho é um bem precioso, que já ninguém nos tira, que guardamos com carinho, sobretudo se é um presente dos responsáveis da nossa existência. Sofia Mota diz que, tal como Luís, “sempre gostei de fotografia. O meu pai gostava muito e eu também. Então comecei com formações no Porto, no Instituto Português de Fotografia”.

 

Sofia define-se como uma pessoa que precisa constantemente de desafios na vida para se sentir viva e – com a fotografia sempre presente no seu percurso – licenciou-se em Psicologia Clínica. Chegou a exercer na área, mas antes que a vida lhe trocasse as voltas, adiantou-se. Fez pisca e virou o volante em direção a outro caminho.

 

Sofia saltita assim de área em área, deixando a sua marca em cada uma delas. Nascida e criada em Leiria, foi nesta cidade que, num entretanto da sua vida, abriu um novo curso superior: tradução e interpretação de Português/Chinês – Chinês/Português. Abriram vagas, abriu uma oportunidade para Sofia, que se lançou de cabeça. “Estou a acabar esta licenciatura, porque acho que é uma mais-valia, uma segurança”. No final, o curso integra um estágio de dois anos, na China. Empolgada e ansiosa com a viagem, de bilhetes na mão e malas às costas, foi-lhe diagnosticado um problema de saúde que impediu a sua partida rumo a um mundo desconhecido. “Fiquei um bocado sem chão. Precisei de me agarrar a alguma coisa, mesmo… de corpo e alma”. Mulher de força e coragem, Sofia tinha de ultrapassar este pedregulho que caiu, num pestanejar de olhos, no seu caminho. Apesar do pó levantado lhe ter entorpecido um pouco os pensamentos, voltou a si. Ainda um pouco desequilibrada, procurou onde se apoiar. “E então pensei ‘o que eu gosto, o que é que eu posso fazer que me possa encher as medidas?’, e aí entrou a fotografia. Então aí foi a sério!”. Calçou as botas, colocou o capacete e começou a escalar o grande rochedo – “entrei em mestrado em Fotografia, em Tomar, e comecei a trabalhar em projetos na área. Fiz o primeiro ano e no segundo decidi investir nesta minha viagem à China”.

 

O mestrado permitiu que começasse a trabalhar a paixão pela fotografia do ponto de vista mais profissional. Daí, rapidamente nasceram projetos pessoais, que foram crescendo e ganhando contornos de dia para dia. “Fui trabalhando, desde a área do mestrado (que é algo mais científico e preciso), até à fotografia de rua, fotorreportagem, … e através da divulgação online do meu trabalho, a revista virtual de fotografia – Camera.Doc – viu umas imagens minhas e gostou muito. Propôs-me que o meu trabalho fosse a avaliação para publicação”. O inesperado convite de entrada para o mundo do trabalho levou Sofia a subir um degrau na sua carreira enquanto fotógrafa. “Eu fiquei muito surpreendida, mas foi um pontapé muito grande que tive, tanto a nível de confiança, como a nível de projeção do meu trabalho. E assim foi, tive os Mistérios da Fé publicados e também serviu para alargar o leque de quem conhecia e do que é que conhecia”.

Movida pela necessidade de fazer algo que gostava, pouco a pouco a Sofia foi tendo algum feedback financeiro, através da aposta em projetos pessoais, mas também pelos contactos que começou a receber para trabalhar.

 

Neste entretanto, e de regresso ao caminho que já traçara há dois anos, é em pleno verão deste ano que, de máquina ao ombro, Sofia irá pousar as malas em continente asiático. “Vou estar dois anos na China a fazer estágio e vou aproveitar para trabalhar na fotografia, fazer umas cadeiras na Academia de Cinema e Fotografia”.

 

De estágio no bolso, o futuro é uma incógnita. O arroz chau-chau e o hashi conquistarão Sofia além os dois anos? “Não tiro essa possibilidade, de todo. As pessoas gostam muito de lá estar. Quase ninguém está cá a trabalhar, dos que já acabaram a licenciatura”.

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