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Um rol de (des)vantagens

A fotografia, além de uma extraordinária arte, é também um enorme tema de discussão. Ou melhor, a evolução da fotografia. Controvérsia. Divergência. Um rol de opiniões, nem sempre coincidentes. Estão constantemente em eleições: fotografia analógica ou fotografia digital? E ninguém conquista o mandato. O número de votos é sempre pouco preciso. A embriaguez de um total que não existe, nem se avista, faz manter o debate. Uma que tem mais qualidade; outra que é mais prática; aquela tem menor custo; esta, um processo mais rápido. As perspetivas são várias.

 

Lucas diz que “a era digital arrumou muito. Tenho ali álbuns há mais de dez anos, porque ninguém compra um álbum, vai tudo para os computadores. Ninguém imprime já”. O desuso de rolos foi uma pedra no seu sapato de negócios, mas ainda assim defende que a evolução tecnológica “tem vantagens, pois com certeza que tem muitas vantagens. – a maneira de trabalhar a fotografia: o photoshop veio revolucionar isto tudo”. Também com uma porta aberta, José Maria responde de forma imediata, fervorosamente, que “esta evolução é muito positiva!”. Interrompe o seu discurso por instantes e retoma num tom mais calmo, “por outro lado é negativa”. O paradoxo da sua resposta explica-se: “positiva na medida em que já não precisamos de utilizar rolos, mas por outro lado é negativa, na medida em que todas as pessoas têm uma máquina, fazem as suas fotos e já não as mandam imprimir”.

 

Já Sofia Mota não hesita, dizendo que a fotografia “digital tem os prós e os contras, como tudo. Financeiramente veio beneficiar, sem dúvida nenhuma”. E Luís Vintém diz que “a discussão é sempre qual é que tem mais qualidade, e essa discussão nunca foi importante para mim, porque as imagens são diferentes e pronto”. Afinal, apesar de trabalhar nas duas espécies de vertentes da fotografia (analógica e digital) – como que dois ramos saídos da mesma árvore, que se vão tornando mais ou menos robustos e vão ganhando musgo – “escolho entre uma e outra por causa do processo, que é diferente. Há muitos detalhes que são muito importantes na fotografia analógica e que já não existem na fotografia digital. Por exemplo, olhar para as fotografias assim que as tiramos. Isto não existe na fotografia analógica (e isso é muito bom), porque a nossa reação imediata à imagem pode não ser a mais correta… precisamos de olhar para ela muitas vezes para conseguir ver as qualidades”.

 

 

Entre fumos analógicos e brindes digitais 

Num leque de quatro cartas, não é possível gritar “kemps!”, já que as personagens de cada uma delas descoincidem entre si.

 

Todas eles aprenderam a caminhar na fotografia analógica. Lucas e José Maria, ambos com uma casa aberta, são levados pela corrente das cheias digitais. Num encolher de ombros de resignação, Lucas murmura que “não é uma questão de preferir ou não preferir. É uma questão de uma pessoa estar atualizada”. De sobrevivência e conciliação com os tempos que correm. Ao contrário, o seu quase vizinho José sorri e diz que “gosto desta parte agora nova. Agora é mais fácil, vemos logo o resultado, olhamos para a fotografia e vemos logo se está boa ou má. A fotografia antiga não me deixa saudades”.

 

Luís Vintém esclarece que esta nova tendência, este “tique de olhar para a imagem assim que a tiramos, chama-se chimping, de chimpanzé. Enquanto se está a olhar para a fotografia, não se está ver” o que se passa ao nosso redor. “E a aceleração do processo prejudica a fotografia. Prejudica o nosso olhar. Temos menos tempo para refletir”. A criteriosidade, o discernimento, a disciplina na fotografia que Luís defende e pratica, percebeu-os e adquiriu-os através da fotografia analógica – “com a analógica, crio uma distância em relação ao momento que fotografei e vou ganhando outro critério. As imagens ficam ali e vou olhando para elas. E só começo a perceber, em algumas fotografias, as qualidades que elas têm, seis meses depois”.

 

Mas parece que há outros vícios digitais. Sofia Mota transpõe o que aprendeu com a fotografia analógica para a fotografia digital, para os evitar. “Aprendi a pensar nas imagens. Porque no digital há um vício, que quase ninguém consegue sair dele, que é tirar, tirar, tirar, porque o cartão leva muitas fotografias. No analógico não. Cada pedaço de filme que gastas, pensas muito bem no que é que vais gastar, o que é que vais usar para pôr ali dentro”.

 

Perceber se toda esta evolução é o vírus exterminador ou só o vírus em modo vacina é uma tentativa vã. As opiniões criam-se de acordo com as necessidades de cada um, com as vivências de cada qual. E a discussão continua.

 

“A fotografia é uma arte muito democrática. Toda a gente tira fotografias e toda a gente tem uma ligação à fotografia, porque faz parte do nosso quotidiano. No tempo em que nós vivemos é impossível imaginar a nossa vida sem a fotografia”, diz Luís, de forma precisa e tranquila. Sofia não se contém no debate e levanta-se para acrescentar “toda a gente fotografa. E o valor da fotografia não se perdeu apenas para quem gosta mesmo de fotografia, mas perdeu-se para as outras pessoas. Agora qualquer telemóvel…”, enterrando-se no sofá no intérmino da frase. Luís anui, “tiram fotografias, mas não pensam nos resultados. Desde que apareçam os amigos e a torre Eiffel atrás…”. José Maria sorri-se. Nos dias de hoje, com a freguesia mais contida, relembra que “antigamente vinham mais. Até famílias e tudo. Agora é raro vir uma família tirar uma foto de estúdio”. Lucas acena com a cabeça em jeito de companheirismo. E conta um episódio que deu um rumo diferente e paralelo ao seu negócio. Há muito tempo, em Ansião “havia um fotógrafo. A loja era ao lado da minha. Ele entretanto morreu e eu andei lá com o homem que vendeu aquilo, o irmão dele, a ver se via alguma coisa que me interessasse, mas não vi nada. Afinal, estavam lá os negativos todos das fotografias que ele tinha tirado. E eu não sabia! Nunca me lembrei dos negativos. Só quando a máquina andava lá a demolir a loja é que eu vi os negativos andarem pelo ar. Ainda lá fui a tempo, ainda apanhei um armário cheio de negativos. E aquele homem tinha uma coisa boa, tinha os negativos todos numerados. Depois tinha o livro correspondente. E o que é que o livro tem? Tem este número, tem a identidade da pessoa que está na fotografia e o local onde morava. Tenho feito muita coisa disso, mas mesmo muito. Tenho encontrado as famílias. Encontrei inclusive fotografias minhas”. José dá uma gargalhada e uma cotovelada ao amigo de boa disposição. E o ambiente torna-se animado e reconfortante.

 

 

O empate num jogo de cartas 

Não tardou para as cartas serem jogadas na mesa, de novo. “As imagens estão em todo o lado. Acho que ainda não há filtro. E só quem está mais dentro do meio é que distingue, quem está de fora não distingue entre as boas e as más imagens”, constata Sofia. Luís abana a cabeça e lança mais uma carta – “quanto mais imagens há, mais as pessoas podem estabelecer relações, avaliar, perceber essa hierarquia, ter a experiência estética e criar um critério de avaliação das coisas. Tenho alguma esperança que as pessoas distingam as imagens. Provavelmente não refletem sobre isso, mas a experiência de ver boas imagens, o contacto com a arte, enriquece-nos”.

 

Infindas questões, inúmeras respostas. Entre cartadas e dedos de conversa, a noite já vai longa, sem um fim definido para o debate posto na mesa. A uma média luz, calorosa e acolhedora, os quatro abandonam a sala pequena e familiar, cada um com as suas certezas e ideais, partilhando pelo menos a convicção de que a fotografia é uma arte.

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